sexta-feira, 30 de maio de 2025

Faltou falar: Quando a propaganda se infiltra no código da verdade

 

Por Jânsen Leiros Jr.

A publicidade oficial, ao invés de servir ao público, cada vez mais atua como agente de persuasão ideológica — remodelando não só o imaginário social, mas também os próprios sistemas de informação.

 

George Orwell — Escritor e ensaísta britânico“O discurso político é projetado para fazer mentiras parecerem verdadeiras e o assassinato respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao puro vento.”

 Hannah Arendt — Filósofa política alemã“A essência da propaganda totalitária não é a persuasão, mas a organização da mentira como verdade social.”

 Neil Postman — “Estamos nos afogando em informações irrelevantes, enquanto nos tornamos incapazes de discernir o que é verdadeiro, importante ou significativo.”

 

No texto anterior[1], analisamos a crescente e preocupante utilização da publicidade estatal como instrumento de manipulação da opinião pública. Mas há ainda pontos cruciais que merecem destaque e aprofundamento.

Além dos anúncios tradicionais em rádio, TV e jornais, o governo investe pesado em campanhas digitais que atuam diretamente nos algoritmos das redes sociais. Essa publicidade estratégica contorna a imprensa tradicional e molda, quase que de forma invisível, o conteúdo que milhões de brasileiros recebem no feed — muitas vezes sem que percebam o viés por trás da mensagem.

Esse tipo de comunicação institucional distorcida não é só um problema de marketing: é um risco grave para a democracia. Ao priorizar narrativas favoráveis, silenciando vozes críticas e reduzindo o espaço para o contraditório, enfraquece-se o senso crítico da população, base fundamental para qualquer regime democrático saudável.

Essa distorção não se limita à esfera humana da comunicação. Ela já alcança as inteligências artificiais. A enxurrada de matérias, postagens e conteúdos alinhados aos interesses governamentais — muitas vezes travestidos de jornalismo neutro — acaba alimentando os algoritmos de IA com uma narrativa única, artificialmente dominante.

O resultado é que usuários menos experientes, ao recorrerem a assistentes virtuais ou mecanismos de busca baseados em IA, recebem respostas moldadas por esse excesso de informações enviesadas. A repetição massiva da mesma perspectiva gera uma falsa sensação de consenso ou de verdade incontestável, quando na verdade se trata apenas da força bruta da repetição — uma falação estratégica que constrói uma realidade fingida, cuidadosamente produzida para parecer espontânea.

Essa nova forma de manipulação, sutil e automatizada, agrava o desafio democrático, pois não apenas influencia consciências, mas também reprograma os instrumentos que usamos para buscar a verdade. É a propaganda oficial entrando no código-fonte da realidade percebida.

Importante lembrar que a Constituição Federal, em seu artigo 37, impõe o princípio da impessoalidade no uso dos recursos públicos — ou seja, a publicidade governamental deve informar e servir a toda a sociedade, sem favorecer interesses políticos ou grupos específicos. Essa regra tem sido repetidamente desrespeitada nas práticas recentes, configurando não só um desvio ético, mas um abuso contra o patrimônio público e o próprio cidadão.

A propaganda estatal, quando usada como ferramenta de auto exaltação, transforma-se em instrumento de manipulação ideológica. Essa preocupação não é nova. George Orwell, em 1984, já denunciava o poder da propaganda como arma de controle social e reconfiguração da realidade. Hannah Arendt, ao analisar os regimes totalitários, advertia que a repetição massiva de mensagens governamentais pode remodelar o pensamento coletivo, eliminando o discernimento crítico e naturalizando o absurdo.

No campo democrático contemporâneo, autores como Noam Chomsky apontam como governos, mesmo em sistemas representativos, usam a mídia — muitas vezes aliada ao poder econômico — para "fabricar consentimento", conduzindo a opinião pública com técnicas sofisticadas de persuasão. A publicidade oficial, nesse contexto, deixa de ser serviço público e passa a ser catequese política disfarçada, onde o cidadão não é mais um interlocutor informado, mas um devoto condicionado.

O debate segue, porque a propaganda estatal não pode ser apenas espetáculo — não é show, nem palanque, muito menos novela de horário nobre. Deve ser, antes de tudo, responsabilidade e transparência. Quando o governante se torna o protagonista da própria encenação e transforma a comunicação pública em vitrine de autopromoção, quem perde é o cidadão, reduzido a plateia passiva de uma narrativa cuidadosamente roteirizada. Só quando a publicidade institucional abandonar os truques de ilusionismo e assumir seu papel republicano — de informar com clareza, ouvir com humildade e prestar contas com verdade — é que teremos, enfim, uma comunicação que respeita o povo, valoriza o contraditório e fortalece a democracia. Não com fogos de artifício, mas com luz.

 




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