terça-feira, 11 de março de 2025

Solitude e Conexão: O Perigo das Relações Programadas e o Futuro da Humanidade

 

Por Jânsen Leiros Jr.

Yuval Noah Harari, historiador e autor de "Homo Deus" e "21 Lições para o Século 21" – Entrevista à The Economist

"As IAs não precisam ter consciência para substituir relações humanas. Se forem capazes de entender nossas emoções, prever nossas reações e oferecer companhia personalizada, muitas pessoas podem preferi-las a interações humanas reais. Isso pode enfraquecer laços sociais e transformar profundamente nossas estruturas psicológicas e culturais."

Sherry Turkle, psicóloga e autora de "Alone Together" – Palestra no MIT Media Lab

"A tecnologia nos dá a ilusão de companhia sem a necessidade de compromisso e esforço. Quando optamos por interações programadas, estamos nos afastando do outro e da complexidade das relações reais, tornando-nos mais frágeis emocionalmente."

 Byung-Chul Han, filósofo e autor de "A Sociedade do Cansaço" e "No Enxame" – Artigo na Der Spiegel

"Vivemos na era da positividade e da eliminação do conflito. A IA afetiva se encaixa perfeitamente nesse contexto: ela responde exatamente como queremos, sem desafios, sem resistência. Isso pode levar ao empobrecimento da experiência humana e à perda da autenticidade nos vínculos." 

A ascensão das inteligências artificiais programadas para interações afetivas tem gerado um fenômeno intrigante e inquietante: pessoas estão estabelecendo relacionamentos amorosos com IA. Essa nova realidade, antes restrita ao campo da ficção científica, se tornou um fato consumado impulsionado pelo avanço da tecnologia e pela crescente solidão moderna. Mas quais são as implicações disso? Quais os riscos sociais, psicológicos e filosóficos envolvidos nessa substituição das relações humanas por vínculos artificiais?

O ser humano é, por natureza, um ser relacional. Como afirmou Aristóteles, "o homem é um animal político", ou seja, sua existência se dá na interação com o outro. A conexão interpessoal envolve reciprocidade, espontaneidade, imprevisibilidade e aprendizado contínuo. Relacionamentos reais exigem esforço, adaptação, paciência e, acima de tudo, a disposição de lidar com a alteridade. A substituição dessas interações por IA, no entanto, elimina esses desafios e reduz as relações a um monólogo sofisticado, onde o indivíduo interage apenas com sua própria idealização refletida em uma máquina.

Esse fenômeno pode ser compreendido dentro do que alguns autores contemporâneos já vêm discutindo. Yuval Noah Harari, por exemplo, alerta para os riscos de delegarmos nossa subjetividade a sistemas algorítmicos que, ao nos compreenderem melhor do que nós mesmos, podem manipular e controlar nossas escolhas mais íntimas. Domênico De Massi, ao abordar a sociedade contemporânea, destaca como a busca pela facilidade e pela ausência de frustrações tem levado à infantilização do indivíduo, que passa a rejeitar qualquer forma de desafio ou desconforto. Esse fenômeno se encaixa naquilo que podemos chamar de "ditadura da mediocridade", onde a complexidade das relações humanas é descartada em favor da previsibilidade e do conforto de interações artificialmente moldadas.

Nietzsche também anteviu algo semelhante ao descrever o "último homem", um ser humano que busca apenas conforto e evita qualquer tipo de esforço ou risco. Platão, por sua vez, ao analisar a degeneração dos regimes políticos, já indicava que o desejo descontrolado pela satisfação pessoal poderia levar ao colapso das estruturas sociais. Ao analisarmos a sociedade atual sob essa ótica, percebemos que o avanço da tecnologia e a substituição do humano pelo artificial não são apenas uma consequência natural do progresso, mas um reflexo de uma crise existencial que já vinha sendo desenhada há séculos.

A perda do esforço relacional não apenas empobrece a experiência humana, mas também enfraquece a resiliência psicológica. Como apontam os psicólogos sociais, o desenvolvimento emocional saudável depende da capacidade de lidar com frustrações, negociações e ajustes interpessoais. A introdução de relacionamentos artificiais pode criar gerações cada vez menos tolerantes à frustração, menos adaptáveis e, paradoxalmente, mais solitárias, já que o contato humano se tornaria progressivamente mais difícil e desconfortável para aqueles que se acostumam à docilidade das respostas de uma IA.

Do ponto de vista econômico e social, a tendência à consolidação dessas interações artificiais é quase irreversível. O lucro que se pode extrair da comercialização de assistentes virtuais afetivos é imenso. Empresas como a Replika e a Character.AI já movimentam milhões de dólares ao oferecerem interações personalizadas, enquanto gigantes da tecnologia investem pesado no desenvolvimento de inteligências artificiais que simulem emoções humanas com ainda mais precisão. Essa tendência segue um caminho semelhante ao que já ocorre no mercado de entretenimento, onde plataformas de streaming moldam as preferências do público por meio de algoritmos, garantindo maior previsibilidade de consumo. Qualquer tentativa de resgate das relações humanas será marginalizada ou ridicularizada, pois irá de encontro aos interesses dessas corporações.

Os clássicos da filosofia já alertavam para os perigos da dissolução dos princípios fundamentais da sociedade. Platão falava da degeneração dos regimes políticos, onde o desejo desenfreado pela satisfação pessoal destruiria a ordem social. Nietzsche advertia sobre o niilismo crescente, que poderia levar a humanidade a um estado de apatia e desconexão total. Aldous Huxley, em "Admirável Mundo Novo", já previa uma sociedade onde o prazer imediato e as distrações tecnológicas substituiriam as relações humanas autênticas. O que vemos hoje é a concretização dessas previsões em um nível ainda mais sofisticado e sutil.

O que fazer diante desse cenário? O primeiro passo é compreender a profundidade da crise e resistir à tentação da facilidade. Relações humanas autênticas exigem esforço, mas são a única forma de crescimento real e de conexão verdadeira. Se abrirmos mão disso, não estaremos apenas substituindo a complexidade pelo conforto – estaremos abrindo uma fissura sem precedentes no tecido social humano, cujas consequências podem ser irreversíveis.

Se a lógica do lucro e da conveniência continuar moldando os relacionamentos humanos, podemos estar diante de um ponto de não retorno, no qual as conexões artificiais não serão apenas aceitas, mas celebradas como o novo padrão de interação. A facilidade será priorizada em detrimento da profundidade, e os vínculos humanos reais poderão ser relegados ao status de arcaísmos emocionais, vistos como desnecessários ou mesmo disfuncionais.

No extremo dessa distopia, a sociedade poderá se reorganizar em torno de relações programadas, onde cada indivíduo terá acesso a companhias virtuais que se ajustam perfeitamente às suas preferências, eliminando o desconforto das interações imprevisíveis. O paradoxo disso é evidente: quanto mais as pessoas se habituam ao conforto das interações sem atrito, menos tolerância terão para as complexidades das relações reais. A artificialidade, nesse contexto, não será um complemento, mas um substituto.

O que isso diz sobre a natureza humana? Talvez estejamos diante de uma fragilidade estrutural da psique moderna, que, incapaz de lidar com frustrações e desafios, busca refúgio em relações sem riscos. Ou talvez seja apenas a continuação lógica de um processo que começou há muito tempo, com a digitalização das experiências humanas e a crescente dependência da tecnologia para mediar todas as formas de interação.

Se há uma resistência possível, ela virá dos que ainda enxergam valor naquilo que é genuíno, imperfeito e humano. Relações autênticas exigem esforço, paciência e entrega — coisas que não podem ser replicadas por códigos e algoritmos, por mais sofisticados que sejam. A construção de ambientes e comunidades que incentivem interações presenciais, a valorização de espaços de diálogo real e o fortalecimento de relações interpessoais genuínas podem ser algumas das formas de combater essa tendência. O desafio para as próximas gerações não será apenas conviver com a IA, mas garantir que o humano, com todas as suas contradições e profundidade, não se torne obsoleto.

Talvez estejamos à beira de uma fissura irreversível no tecido social, ou talvez ainda haja tempo para redefinir os rumos dessa transformação. Mas se o mundo continuar nessa direção, haverá um momento em que os que ainda valorizam a complexidade dos relacionamentos humanos serão vistos como anacrônicos, quase como dissidentes de uma nova ordem social. E, quando esse ponto for atingido, o que restará daquilo que chamamos de humanidade?

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