Por Jânsen Leiros Jr.
Yuval Noah Harari, historiador e autor de "Homo Deus" e "21
Lições para o Século 21" – Entrevista à The Economist
"As IAs
não precisam ter consciência para substituir relações humanas. Se forem capazes
de entender nossas emoções, prever nossas reações e oferecer companhia
personalizada, muitas pessoas podem preferi-las a interações humanas reais.
Isso pode enfraquecer laços sociais e transformar profundamente nossas
estruturas psicológicas e culturais."
Sherry Turkle, psicóloga e autora de "Alone Together" – Palestra no MIT Media Lab
"A
tecnologia nos dá a ilusão de companhia sem a necessidade de compromisso e
esforço. Quando optamos por interações programadas, estamos nos afastando do
outro e da complexidade das relações reais, tornando-nos mais frágeis emocionalmente."
Byung-Chul Han, filósofo e autor de "A Sociedade do Cansaço" e "No Enxame" – Artigo na Der Spiegel
"Vivemos na era da positividade e da eliminação do conflito. A IA afetiva se encaixa perfeitamente nesse contexto: ela responde exatamente como queremos, sem desafios, sem resistência. Isso pode levar ao empobrecimento da experiência humana e à perda da autenticidade nos vínculos."
A ascensão das inteligências artificiais programadas para
interações afetivas tem gerado um fenômeno intrigante e inquietante: pessoas
estão estabelecendo relacionamentos amorosos com IA. Essa nova realidade, antes
restrita ao campo da ficção científica, se tornou um fato consumado
impulsionado pelo avanço da tecnologia e pela crescente solidão moderna. Mas
quais são as implicações disso? Quais os riscos sociais, psicológicos e
filosóficos envolvidos nessa substituição das relações humanas por vínculos
artificiais?
O
ser humano é, por natureza, um ser relacional. Como afirmou Aristóteles,
"o homem é um animal político", ou seja, sua existência se dá na
interação com o outro. A conexão interpessoal envolve reciprocidade,
espontaneidade, imprevisibilidade e aprendizado contínuo. Relacionamentos reais
exigem esforço, adaptação, paciência e, acima de tudo, a disposição de lidar
com a alteridade. A substituição dessas interações por IA, no entanto, elimina
esses desafios e reduz as relações a um monólogo sofisticado, onde o indivíduo
interage apenas com sua própria idealização refletida em uma máquina.
Esse
fenômeno pode ser compreendido dentro do que alguns autores contemporâneos já
vêm discutindo. Yuval Noah Harari, por exemplo, alerta para os riscos de
delegarmos nossa subjetividade a sistemas algorítmicos que, ao nos
compreenderem melhor do que nós mesmos, podem manipular e controlar nossas
escolhas mais íntimas. Domênico De Massi, ao abordar a sociedade contemporânea,
destaca como a busca pela facilidade e pela ausência de frustrações tem levado
à infantilização do indivíduo, que passa a rejeitar qualquer forma de desafio
ou desconforto. Esse fenômeno se encaixa naquilo que podemos chamar de
"ditadura da mediocridade", onde a complexidade das relações humanas
é descartada em favor da previsibilidade e do conforto de interações
artificialmente moldadas.
Nietzsche
também anteviu algo semelhante ao descrever o "último homem", um ser
humano que busca apenas conforto e evita qualquer tipo de esforço ou risco.
Platão, por sua vez, ao analisar a degeneração dos regimes políticos, já
indicava que o desejo descontrolado pela satisfação pessoal poderia levar ao
colapso das estruturas sociais. Ao analisarmos a sociedade atual sob essa
ótica, percebemos que o avanço da tecnologia e a substituição do humano pelo
artificial não são apenas uma consequência natural do progresso, mas um reflexo
de uma crise existencial que já vinha sendo desenhada há séculos.
A
perda do esforço relacional não apenas empobrece a experiência humana, mas
também enfraquece a resiliência psicológica. Como apontam os psicólogos
sociais, o desenvolvimento emocional saudável depende da capacidade de lidar
com frustrações, negociações e ajustes interpessoais. A introdução de
relacionamentos artificiais pode criar gerações cada vez menos tolerantes à
frustração, menos adaptáveis e, paradoxalmente, mais solitárias, já que o
contato humano se tornaria progressivamente mais difícil e desconfortável para
aqueles que se acostumam à docilidade das respostas de uma IA.
Do
ponto de vista econômico e social, a tendência à consolidação dessas interações
artificiais é quase irreversível. O lucro que se pode extrair da
comercialização de assistentes virtuais afetivos é imenso. Empresas como a
Replika e a Character.AI já movimentam milhões de dólares ao oferecerem
interações personalizadas, enquanto gigantes da tecnologia investem pesado no
desenvolvimento de inteligências artificiais que simulem emoções humanas com
ainda mais precisão. Essa tendência segue um caminho semelhante ao que já
ocorre no mercado de entretenimento, onde plataformas de streaming moldam as
preferências do público por meio de algoritmos, garantindo maior
previsibilidade de consumo. Qualquer tentativa de resgate das relações humanas
será marginalizada ou ridicularizada, pois irá de encontro aos interesses
dessas corporações.
Os
clássicos da filosofia já alertavam para os perigos da dissolução dos
princípios fundamentais da sociedade. Platão falava da degeneração dos regimes
políticos, onde o desejo desenfreado pela satisfação pessoal destruiria a ordem
social. Nietzsche advertia sobre o niilismo crescente, que poderia levar a
humanidade a um estado de apatia e desconexão total. Aldous Huxley, em
"Admirável Mundo Novo", já previa uma sociedade onde o prazer
imediato e as distrações tecnológicas substituiriam as relações humanas
autênticas. O que vemos hoje é a concretização dessas previsões em um nível
ainda mais sofisticado e sutil.
O
que fazer diante desse cenário? O primeiro passo é compreender a profundidade
da crise e resistir à tentação da facilidade. Relações humanas autênticas
exigem esforço, mas são a única forma de crescimento real e de conexão
verdadeira. Se abrirmos mão disso, não estaremos apenas substituindo a
complexidade pelo conforto – estaremos abrindo uma fissura sem precedentes no
tecido social humano, cujas consequências podem ser irreversíveis.
Se
a lógica do lucro e da conveniência continuar moldando os relacionamentos
humanos, podemos estar diante de um ponto de não retorno, no qual as conexões
artificiais não serão apenas aceitas, mas celebradas como o novo padrão de
interação. A facilidade será priorizada em detrimento da profundidade, e os
vínculos humanos reais poderão ser relegados ao status de arcaísmos emocionais,
vistos como desnecessários ou mesmo disfuncionais.
No
extremo dessa distopia, a sociedade poderá se reorganizar em torno de relações
programadas, onde cada indivíduo terá acesso a companhias virtuais que se
ajustam perfeitamente às suas preferências, eliminando o desconforto das
interações imprevisíveis. O paradoxo disso é evidente: quanto mais as pessoas
se habituam ao conforto das interações sem atrito, menos tolerância terão para
as complexidades das relações reais. A artificialidade, nesse contexto, não
será um complemento, mas um substituto.
O
que isso diz sobre a natureza humana? Talvez estejamos diante de uma
fragilidade estrutural da psique moderna, que, incapaz de lidar com frustrações
e desafios, busca refúgio em relações sem riscos. Ou talvez seja apenas a
continuação lógica de um processo que começou há muito tempo, com a
digitalização das experiências humanas e a crescente dependência da tecnologia
para mediar todas as formas de interação.
Se
há uma resistência possível, ela virá dos que ainda enxergam valor naquilo que
é genuíno, imperfeito e humano. Relações autênticas exigem esforço, paciência e
entrega — coisas que não podem ser replicadas por códigos e algoritmos, por
mais sofisticados que sejam. A construção de ambientes e comunidades que
incentivem interações presenciais, a valorização de espaços de diálogo real e o
fortalecimento de relações interpessoais genuínas podem ser algumas das formas
de combater essa tendência. O desafio para as próximas gerações não será apenas
conviver com a IA, mas garantir que o humano, com todas as suas contradições e
profundidade, não se torne obsoleto.
Talvez
estejamos à beira de uma fissura irreversível no tecido social, ou talvez ainda
haja tempo para redefinir os rumos dessa transformação. Mas se o mundo
continuar nessa direção, haverá um momento em que os que ainda valorizam a
complexidade dos relacionamentos humanos serão vistos como anacrônicos, quase
como dissidentes de uma nova ordem social. E, quando esse ponto for atingido, o
que restará daquilo que chamamos de humanidade?
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