sexta-feira, 30 de maio de 2025

A Verdade não se anuncia em intervalos

 

Por Jânsen Leiros Jr.

Como a propaganda oficial tenta esconder a realidade brasileira por trás de jingles e sorrisos ensaiados.

 

George Orwell — Escritor e ensaísta britânico“A propaganda é à democracia o que a violência é à ditadura.”

 Hannah Arendt — Filósofa política alemã“O maior inimigo da verdade não é a mentira deliberada, mas a banalização da realidade.”

 Aldous Huxley — Escritor e filósofo britânico, autor de "Admirável Mundo Novo" “A tirania perfeita será aquela que parecer uma democracia, mas que na verdade será uma prisão sem muros, onde os prisioneiros não sonharão com a fuga porque amarão sua servidão.”

 

Há uma névoa que paira sobre o país — e não é a do clima. É a névoa produzida por jingles, slogans e campanhas de governo que tomam conta da mídia como um bálsamo ensaiado, tentando convencer o povo de que tudo vai bem, mesmo quando o chão falta debaixo dos pés.

Nos últimos anos, o governo federal reativou sua máquina de propaganda com uma voracidade que beira o desespero. Não se trata de comunicar ações ou prestar contas à população. Trata-se de salvar imagem, de revestir um desgaste crescente com a maquiagem cara das campanhas institucionais. Não é publicidade, é pregação política travestida de prestação de serviço.

Enquanto o brasileiro comum luta para entender o preço da gasolina, o corte no orçamento das universidades, a fila do SUS ou a insegurança nas ruas, o governo entope os meios de comunicação com mensagens otimistas, produzidas para estancar o derretimento nas pesquisas. O alvo não é a verdade — é a percepção. E como já dizia o velho Goebbels, "uma mentira repetida mil vezes vira verdade".

Para contextualizar, em 2015, sob o governo Dilma Rousseff, os gastos com publicidade federal caíram para R$ 1,864 bilhão, representando uma redução de 24,1% em relação ao ano anterior. No primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, os gastos foram de R$ 935 milhões. Em contraste, a previsão para 2025, sob o atual governo, é de até R$ 3,5 bilhões em contratos de publicidade, abrangendo ministérios, bancos e estatais.

Esse fenômeno não começou ontem. Mas o que se vê agora é um salto qualitativo e eticamente perturbador: os gastos com publicidade federal se concentram em agências de publicidade com histórico de proximidade com o governo, algumas delas reincidentes em contratos milionários, muitas vezes sem o devido processo de concorrência transparente. Além disso, os veículos de comunicação escolhidos para veicular as campanhas são criteriosamente alinhados à simpatia editorial para com o governo — ou, ao menos, à ausência de crítica contundente. Ora, não há brasileiros assistindo a outras emissoras? A intenção, em princípio, não é comunicar e conscientizar os cidadãos? Então os critérios deveriam ser técnicos e não políticos.

Basta observar que jornais e redes independentes, de linha mais crítica, foram paulatinamente excluídos da lista de beneficiários das verbas publicitárias federais, enquanto grupos tradicionais e portais favoráveis ao discurso oficial viram suas cotas aumentarem expressivamente. A publicidade estatal, que deveria seguir parâmetros impessoais e republicanos, transformou-se em moeda de troca por apoio, silêncio ou alinhamento ideológico. Não se premia o alcance, mas a conveniência. É a velha prática do “quem cala, recebe” — reeditada com sofisticação institucional. A máquina pública se move como uma engrenagem de campanha antecipada, sem dizer que é campanha, sem admitir que já se mira 2026.

E é aí que mora o escândalo. Porque quando a verba da publicidade pública vira instrumento de manipulação de consciência coletiva, o Estado se torna um vendedor de ilusões. E o povo, um consumidor forçado de propaganda paga com seu próprio imposto.

Enquanto o país é inundado por campanhas que exaltam avanços e “conquistas”, os números da realidade seguem em direção oposta — fria, dura, inegável. O endividamento das famílias brasileiras permanece elevado, com 77% das famílias endividadas em 2024, sendo que 29,4% relataram dívidas em atraso e 12,9% afirmaram não ter condições de quitá-las. Entre as famílias de menor renda (0 a 3 salários mínimos), o endividamento aumentou para 81,1%, com 37,5% relatando dívidas em atraso.

A população em situação de rua aumentou aproximadamente 25% no último ano, passando de mais de 261 mil em dezembro de 2023 para quase 328 mil no fim de 2024. Esse número é 14 vezes superior ao registrado onze anos atrás, quando havia 22.922 pessoas vivendo nas ruas no país. A Região Sudeste concentra 63% dessas pessoas, com destaque para o estado de São Paulo, que representa 43% do total.

O desemprego diminuiu, é verdade — mas foi substituído por ocupações informais, intermitentes ou de baixíssima remuneração. Cresce o número de brasileiros sobrevivendo como “autônomos compulsórios”: motoristas de aplicativo, entregadores, ambulantes, freelancers à deriva — muitos dos quais sequer contribuem para a previdência e tampouco têm acesso pleno a direitos trabalhistas básicos.

E, por fim, enquanto o governo anuncia feitos grandiosos na educação e na saúde, faltam remédios nos postos, segurança nas escolas e estrutura nos hospitais. A retórica das propagandas se choca com o cotidiano dos cidadãos comuns, que esperam por cirurgias, enfrentam salas de aula lotadas e percorrem longos trajetos em busca de atendimento.

A realidade não precisa de slogans. Ela fala sozinha. E quando ela grita, a propaganda se torna não apenas inócua — mas criminosa.

Há algo profundamente perigoso no uso reiterado da máquina publicitária estatal como instrumento de anestesia coletiva. Não se trata mais de mera comunicação institucional — aquela que informa, orienta, presta contas. O que temos é uma orquestra de narrativas cuidadosamente selecionadas, com trilhas otimistas, atores sorridentes e mensagens plastificadas, tentando colar um país imaginário sobre um país real e sofrido.

Enquanto o povo se aperta para pagar as contas, vive de bicos ou dorme sob marquises, o governo transmite uma ilusão de prosperidade. Como um mágico de auditório, esconde a realidade com movimentos teatrais e luzes artificiais. E nessa encenação cara e contínua, paga com o suor do contribuinte, transforma a dor coletiva em espetáculo palatável — e a gestão pública em marketing de vitrine. Não se trata de comunicação — mas de sedação.

O que está em jogo é mais do que um orçamento turbinado: é o próprio pacto democrático. Porque um governo que precisa gritar nos intervalos comerciais para parecer que governa, já não governa. Apenas encena. 

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Fontes e Referências

DADOS SOBRE GASTOS COM PUBLICIDADE GOVERNAMENTAL:

  1. Portal da Transparência (Governo Federal)
  2. Controladoria-Geral da União (CGU)
    • Relatórios anuais de execução orçamentária.
    • Utilizada para verificar comparativos de gastos por governo.
  3. Secom/PR – Secretaria de Comunicação da Presidência da República
    • Publicações e comunicados oficiais sobre planos de mídia e contratação de agências.
    • Usada como base para projeções e contratos atuais (governo 2025).
  4. Notícias da imprensa (sobre previsões de gastos publicitários)
    • Estadão, Folha, CNN Brasil, O Globo, Poder360, Agência Pública.
    • Exemplo:
      • CNN Brasil – “Governo federal prevê gastar até R$ 3,5 bilhões com publicidade em 2025”

DADOS SOCIOECONÔMICOS:

  1. Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) – CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo)
  2. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
    • PNAD Contínua (desemprego e informalidade).
    • Dados utilizados para compor o trecho sobre ocupações informais e trabalho precário.
  3. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
    • Estudos sobre população em situação de rua.
    • Dados usados para o trecho sobre o aumento da população sem moradia (2023–2024).
    • Relatório técnico IPEA 2024

 

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