sábado, 1 de março de 2025

Ascensão da Direita na Europa: Descontentamento Popular ou Ameaça?

Por Jânsen Leiros Jr.

Carlos Pereira, cientista político e professor da FGV – Entrevista à BBC Brasil
"O crescimento da extrema-direita na Europa reflete um descontentamento profundo com a política tradicional. Crises econômicas, insegurança social e o medo da perda de identidade nacional são explorados por esses partidos para angariar apoio."
 

Moisés Mendes, jornalista e analista político – Artigo no El País Brasil
"A ascensão da extrema-direita não é um fenômeno isolado. Redes sociais amplificam discursos radicais, e partidos tradicionais muitas vezes falham em apresentar respostas eficazes para o eleitorado insatisfeito. O desafio das democracias é responder a essa onda sem comprometer liberdades fundamentais."

Nos últimos anos, observamos um crescimento significativo de movimentos identificados como de "direita" ou "extrema-direita" em diversas nações, especialmente na Europa. Países como Alemanha, França, Itália, Portugal e Espanha têm visto o fortalecimento de partidos com discursos que questionam o liberalismo cultural, a política migratória e o papel do globalismo na economia e nos valores nacionais. No entanto, o rótulo de "extremismo" atribuído a esses movimentos muitas vezes é utilizado de maneira genérica, sem diferenciar entre uma reação democrática e manifestações de radicalismo autêntico.

Os fatores socioeconômicos e a insatisfação popular

Crises econômicas recorrentes, combinadas com políticas de austeridade severas, têm sido um dos principais motores da insatisfação popular em diversas nações europeias. Desde a crise financeira de 2008, muitos países adotaram medidas de corte de gastos e aumento de impostos para conter déficits orçamentários, o que, na prática, resultou na precarização do trabalho, no enfraquecimento do estado de bem-estar social e na redução do poder aquisitivo da classe média e trabalhadora. Na Grécia, por exemplo, a crise da dívida soberana levou a uma década de recessão, com cortes massivos em serviços públicos essenciais e um desemprego que, em seu auge, ultrapassou os 27%. Situação semelhante ocorreu em países como Espanha e Portugal, onde altas taxas de desemprego e a instabilidade econômica geraram uma população descrente da capacidade dos partidos tradicionais em oferecer soluções eficazes.

Além disso, a globalização e a transição para uma economia mais tecnológica também contribuíram para a erosão de indústrias tradicionais e postos de trabalho de baixa qualificação. Regiões inteiras, antes prósperas devido à manufatura, passaram a sofrer com desindustrialização, como se viu no norte da França e em partes da Alemanha. Isso alimentou o sentimento de abandono por parte dos governos centrais, levando populações afetadas a buscar alternativas políticas que prometessem restaurar empregos e proteger a economia nacional. Esse fenômeno não se limita à Europa; nos Estados Unidos, esse mesmo descontentamento foi um dos fatores que impulsionaram a eleição de Donald Trump em 2016, com sua retórica de revitalização da indústria nacional e proteção ao trabalhador americano.

O rótulo de “populismo”, frequentemente atribuído a esses movimentos, ignora o fato de que grande parte da insatisfação vem de problemas concretos e não apenas de manipulação política. Quando uma parcela significativa da população sente que seu padrão de vida está em declínio, é natural que procure alternativas que prometam resgatar a estabilidade econômica. A incapacidade dos partidos tradicionais de atender a essas demandas tem sido um dos maiores trunfos para o crescimento de forças políticas que desafiam o establishment.

Migração: debate necessário ou discurso xenófobo?

A questão migratória tornou-se um dos temas mais polarizados na política europeia contemporânea, sendo frequentemente tratada de maneira binária: ou como uma crise humanitária que exige acolhimento irrestrito ou como uma ameaça à identidade nacional e à segurança pública. No entanto, a realidade é mais complexa. O fluxo migratório em massa, especialmente após a crise dos refugiados de 2015, quando mais de um milhão de pessoas entraram na Europa fugindo de conflitos no Oriente Médio e na África, gerou desafios estruturais significativos. Países como Alemanha e Suécia, que inicialmente adotaram políticas de portas abertas, enfrentaram dificuldades na integração desses imigrantes, desde barreiras linguísticas e culturais até a sobrecarga em serviços públicos, como habitação, saúde e educação.

O impacto no mercado de trabalho também é uma preocupação legítima para muitos cidadãos. Embora alguns setores da economia europeia dependam da mão de obra imigrante, especialmente em áreas como construção civil e serviços domésticos, a concorrência gerada pela chegada de trabalhadores dispostos a aceitar salários mais baixos pressiona o mercado e pode agravar a precarização do emprego. Na Itália, por exemplo, agricultores relataram a substituição gradual de trabalhadores locais por migrantes dispostos a aceitar condições salariais inferiores, o que intensificou a rejeição popular a políticas migratórias mais flexíveis.

Além disso, questões de segurança foram levantadas em diversos países após atentados terroristas cometidos por indivíduos que entraram na Europa através das rotas migratórias ou que se radicalizaram dentro do continente. Embora a maioria dos imigrantes não esteja envolvida em atividades criminosas, o aumento da criminalidade em algumas regiões e a dificuldade de controle sobre fluxos migratórios têm sido usados como argumentos por aqueles que defendem uma abordagem mais rígida. Casos como os ataques de 2015 em Paris e o atentado de Berlim em 2016 reforçaram a ideia, propagada por partidos de direita, de que a imigração descontrolada pode ter consequências imprevistas.

No entanto, restringir a imigração de forma indiscriminada também pode ter efeitos negativos. A escassez de mão de obra em setores estratégicos, como saúde e tecnologia, já se tornou um problema em países como Reino Unido e Alemanha, que agora tentam atrair trabalhadores qualificados para suprir suas necessidades. Dessa forma, o verdadeiro desafio não está em aceitar ou rejeitar a imigração como um todo, mas em formular políticas que conciliem a proteção da identidade e do mercado nacional com a necessidade de mão de obra e os princípios humanitários.

Assim, classificar qualquer questionamento sobre política migratória como xenofobia desconsidera preocupações legítimas da população. O debate precisa ser conduzido de maneira racional e equilibrada, sem reduções simplistas que demonizem qualquer um dos lados. A Europa enfrenta um dilema real e complexo, e apenas um diálogo franco e aberto poderá resultar em soluções eficazes.

Identidade nacional: entre a preservação e a acusação de radicalismo

A valorização da cultura nacional tem sido vista, por determinados setores políticos e acadêmicos, como um sintoma de nacionalismo exacerbado e até como um entrave à globalização e ao multiculturalismo. Entretanto, a necessidade de preservar tradições, costumes e símbolos nacionais é uma realidade em muitas sociedades, especialmente aquelas que passaram por períodos de intensa imigração ou influência externa. Em países como França e Alemanha, por exemplo, o debate sobre identidade nacional tem se intensificado à medida que políticas de integração de imigrantes são implementadas sem uma consideração profunda sobre o impacto na cultura local.

Na França, o governo de Emmanuel Macron tem lidado com tensões sobre o uso do véu islâmico em espaços públicos, com medidas restritivas que visam preservar o caráter secular da nação, mas que, para críticos, são um ataque à diversidade cultural. Já na Alemanha, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), classificado por muitos como de extrema-direita, tem conquistado apoio ao defender um retorno a valores tradicionais alemães, argumentando que a imigração descontrolada dilui a identidade nacional. O ministro do Interior da Alemanha, Nancy Faeser, alertou em diversas ocasiões para o crescimento de movimentos nacionalistas, afirmando que “a democracia precisa se defender contra qualquer forma de extremismo”, ao mesmo tempo em que setores conservadores acusam o governo de promover censura ideológica.

Esse embate levanta uma questão fundamental: até que ponto a valorização da cultura nacional pode ser vista como uma ameaça à diversidade e à inclusão? Enquanto o discurso progressista enfatiza a proteção de minorias e a ampliação dos direitos sociais, frequentemente ignora o fato de que enfraquecer tradições e símbolos nacionais também pode ser uma forma de intolerância. Em Portugal, por exemplo, houve polêmicas recentes sobre a reavaliação de monumentos históricos ligados ao período colonial, com setores defendendo a remoção de estátuas de figuras históricas como o Infante Dom Henrique. Para muitos portugueses, essa tentativa de reescrever a história nacional representa uma desconstrução forçada da identidade do país, em vez de um avanço no debate sobre inclusão e reparação histórica.

Redes sociais e a politização do discurso

As plataformas digitais revolucionaram o acesso à informação e a maneira como as sociedades debatem temas políticos, sociais e culturais. No entanto, essa abertura ao debate tem sido acompanhada por uma crescente politização dos algoritmos e da moderação de conteúdo. Redes sociais como Facebook, Twitter (agora X) e YouTube passaram a adotar políticas rigorosas contra a chamada "desinformação", levando à remoção de conteúdos e perfis que supostamente violam diretrizes comunitárias. O problema, segundo críticos, é que essas diretrizes são frequentemente aplicadas de maneira seletiva, beneficiando determinados grupos políticos enquanto silencia outros.

O ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson, por exemplo, criticou abertamente o papel das redes sociais na censura de discursos conservadores. Em 2021, ele afirmou que "as big techs não podem substituir os parlamentos e definir sozinhas os limites da liberdade de expressão". Em contrapartida, autoridades da União Europeia, como a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, têm pressionado as plataformas a intensificar o combate à desinformação, especialmente em períodos eleitorais. Em outubro de 2023, a UE lançou o Digital Services Act (DSA), uma lei que obriga redes sociais a remover conteúdos considerados nocivos ou falsos. Para críticos, essa legislação pode ser usada como uma ferramenta de censura, permitindo que governos e corporações determinem unilateralmente o que é ou não aceitável no debate público.

O conceito de "desinformação" também se tornou um campo de batalha político. Nos protestos contra restrições sanitárias durante a pandemia de COVID-19, postagens que questionavam medidas de lockdown ou vacinas foram rapidamente removidas por violarem as diretrizes das plataformas, mesmo quando vinham de especialistas renomados. Essa seletividade levanta a questão: quem tem autoridade para definir o que é "desinformação" e o que é um questionamento legítimo dentro do debate democrático? O risco de um controle excessivo do discurso nas redes sociais é a criação de um ambiente onde apenas uma visão de mundo tem espaço, minando um dos pilares da democracia — a pluralidade de ideias.

Em países como Itália e Espanha, políticos conservadores têm acusado as redes sociais de silenciar vozes que questionam políticas migratórias, ambientais e sociais. Giorgia Meloni, atual primeira-ministra da Itália, já declarou que “a liberdade de expressão não pode ser seletiva” e que “quando gigantes da tecnologia decidem quem pode ou não falar, estamos diante de um novo tipo de totalitarismo digital”.

O crescimento da censura digital e a politização do discurso nas redes sociais mostram que a liberdade de expressão está cada vez mais sujeita a critérios subjetivos. A polarização ideológica se reflete na forma como as opiniões são validadas ou suprimidas, o que evidencia a necessidade de regras mais transparentes e equitativas na moderação de conteúdo digital. O que está em jogo não é apenas a proteção contra discursos violentos ou falsos, mas o equilíbrio entre liberdade de expressão e controle da informação por entidades privadas e governos.

Entre o Medo e a Adaptação: Como os Partidos Tradicionais Reagem

A ascensão de movimentos de direita e conservadores na Europa tem desafiado partidos tradicionais, especialmente aqueles de centro e esquerda, que historicamente dominaram o cenário político. Diante desse avanço, a resposta dessas legendas tem variado entre a tentativa de adaptação e o confronto direto. Alguns partidos de centro-esquerda buscaram incorporar discursos mais nacionalistas e fortalecer políticas de segurança para tentar recuperar eleitores que migraram para a direita. O Partido Socialista francês, por exemplo, endureceu o discurso sobre imigração nos últimos anos, tentando frear o crescimento da Reunião Nacional, de Marine Le Pen. Na Alemanha, a CDU (União Democrata-Cristã) passou a defender um controle mais rígido das fronteiras, reconhecendo que a questão migratória é uma preocupação legítima de muitos cidadãos.

No entanto, outra estratégia adotada tem sido a criminalização política dos opositores. Em vez de debater propostas concretas, certos setores preferem classificar qualquer movimento conservador como "extremista" ou "antidemocrático", uma postura que, paradoxalmente, pode impulsionar ainda mais esses grupos. Isso foi evidente na Espanha, onde o partido de direita VOX tem sido sistematicamente associado a discursos de ódio por seus adversários políticos, apesar de atuar dentro das regras democráticas. O primeiro-ministro Pedro Sánchez tem insistido em alertar sobre o "perigo" da extrema-direita, uma narrativa que, longe de desmobilizar os eleitores desse espectro, tem fortalecido a percepção de perseguição política.

Essa estratégia de demonização pode se tornar um tiro pela culatra, pois tende a reforçar a polarização e fortalecer a narrativa de que as elites políticas estão desconectadas da realidade do povo. O crescimento do Fratelli d'Italia, de Giorgia Meloni, é um exemplo disso. Durante anos, a esquerda italiana retratou Meloni como uma ameaça à democracia, mas, ao assumir o governo, sua gestão manteve compromissos com a estabilidade econômica e política, reduzindo drasticamente o impacto dessas acusações. Assim, os partidos tradicionais se encontram diante de um dilema: ou ajustam suas agendas para dialogar melhor com os anseios populares, ou arriscam perder ainda mais espaço no tabuleiro político.

Democracia em risco ou apenas o jogo político?

Um dos argumentos mais recorrentes contra a ascensão da direita é a ideia de que esse movimento representa uma ameaça à democracia. No entanto, essa leitura muitas vezes ignora um princípio básico da política: a alternância de poder é essencial para a vitalidade democrática. Se um grupo político perde espaço e outro cresce dentro das regras do jogo, não se trata de um risco ao sistema, mas de um reflexo da insatisfação popular com os governos anteriores.

O exemplo mais claro disso ocorreu na Itália. Quando Giorgia Meloni venceu as eleições de 2022, veículos de imprensa e figuras da política europeia alertaram para um suposto risco autoritário, comparando-a a líderes da era fascista. Entretanto, após mais de um ano no poder, Meloni manteve a Itália alinhada à União Europeia e não promoveu nenhuma mudança estrutural que ameaçasse a democracia. O mesmo aconteceu com Donald Trump nos Estados Unidos: apesar das polêmicas e do estilo agressivo, sua administração seguiu e tem seguido, neste segundo mandato, os princípios do sistema democrático americano.

O problema real surge quando a criminalização de uma corrente política passa a ser usada como instrumento para restringir a competição eleitoral. Em países como Espanha e França, há um esforço contínuo para associar a direita a movimentos antidemocráticos, muitas vezes ignorando que a mesma crítica poderia ser feita a setores da extrema-esquerda. O partido França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, já foi acusado de minimizar atos violentos de militantes radicais, mas raramente recebe o mesmo nível de condenação pública que partidos de direita.

O verdadeiro risco à democracia não está na ascensão da direita ou da esquerda, mas na tentativa de silenciar opositores por meio da deslegitimação política. A democracia não se fortalece com a supressão de ideias divergentes, mas com um debate aberto, onde diferentes visões possam ser discutidas sem medo de represálias ou censura.

O recado das urnas: ouvindo o que a população tem a dizer

O crescimento dos movimentos de direita na Europa não pode ser reduzido a uma simples reação populista ou a um fenômeno passageiro. Ele reflete uma insatisfação legítima com políticas que, por anos, ignoraram demandas de segurança, identidade cultural e soberania econômica. Se os partidos tradicionais continuarem a rejeitar essas preocupações como meras expressões de extremismo, correm o risco de se tornarem cada vez mais irrelevantes no cenário político.

         Em vez de demonizar esses movimentos, é mais produtivo analisar suas reivindicações e considerar até que ponto elas refletem problemas reais na sociedade. A política é feita de ciclos, e a ascensão de novos atores não significa necessariamente uma ameaça, mas sim um sinal de que certos setores da sociedade não se sentem mais representados pelos partidos tradicionais. A democracia não se fortalece com silenciamentos, mas com debates sólidos, respeito à pluralidade de ideias e uma real disposição para ouvir o que as urnas estão dizendo.



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