sexta-feira, 30 de maio de 2025

Faltou falar: Quando a propaganda se infiltra no código da verdade

 

Por Jânsen Leiros Jr.

A publicidade oficial, ao invés de servir ao público, cada vez mais atua como agente de persuasão ideológica — remodelando não só o imaginário social, mas também os próprios sistemas de informação.

 

George Orwell — Escritor e ensaísta britânico“O discurso político é projetado para fazer mentiras parecerem verdadeiras e o assassinato respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao puro vento.”

 Hannah Arendt — Filósofa política alemã“A essência da propaganda totalitária não é a persuasão, mas a organização da mentira como verdade social.”

 Neil Postman — “Estamos nos afogando em informações irrelevantes, enquanto nos tornamos incapazes de discernir o que é verdadeiro, importante ou significativo.”

 

No texto anterior[1], analisamos a crescente e preocupante utilização da publicidade estatal como instrumento de manipulação da opinião pública. Mas há ainda pontos cruciais que merecem destaque e aprofundamento.

Além dos anúncios tradicionais em rádio, TV e jornais, o governo investe pesado em campanhas digitais que atuam diretamente nos algoritmos das redes sociais. Essa publicidade estratégica contorna a imprensa tradicional e molda, quase que de forma invisível, o conteúdo que milhões de brasileiros recebem no feed — muitas vezes sem que percebam o viés por trás da mensagem.

Esse tipo de comunicação institucional distorcida não é só um problema de marketing: é um risco grave para a democracia. Ao priorizar narrativas favoráveis, silenciando vozes críticas e reduzindo o espaço para o contraditório, enfraquece-se o senso crítico da população, base fundamental para qualquer regime democrático saudável.

Essa distorção não se limita à esfera humana da comunicação. Ela já alcança as inteligências artificiais. A enxurrada de matérias, postagens e conteúdos alinhados aos interesses governamentais — muitas vezes travestidos de jornalismo neutro — acaba alimentando os algoritmos de IA com uma narrativa única, artificialmente dominante.

O resultado é que usuários menos experientes, ao recorrerem a assistentes virtuais ou mecanismos de busca baseados em IA, recebem respostas moldadas por esse excesso de informações enviesadas. A repetição massiva da mesma perspectiva gera uma falsa sensação de consenso ou de verdade incontestável, quando na verdade se trata apenas da força bruta da repetição — uma falação estratégica que constrói uma realidade fingida, cuidadosamente produzida para parecer espontânea.

Essa nova forma de manipulação, sutil e automatizada, agrava o desafio democrático, pois não apenas influencia consciências, mas também reprograma os instrumentos que usamos para buscar a verdade. É a propaganda oficial entrando no código-fonte da realidade percebida.

Importante lembrar que a Constituição Federal, em seu artigo 37, impõe o princípio da impessoalidade no uso dos recursos públicos — ou seja, a publicidade governamental deve informar e servir a toda a sociedade, sem favorecer interesses políticos ou grupos específicos. Essa regra tem sido repetidamente desrespeitada nas práticas recentes, configurando não só um desvio ético, mas um abuso contra o patrimônio público e o próprio cidadão.

A propaganda estatal, quando usada como ferramenta de auto exaltação, transforma-se em instrumento de manipulação ideológica. Essa preocupação não é nova. George Orwell, em 1984, já denunciava o poder da propaganda como arma de controle social e reconfiguração da realidade. Hannah Arendt, ao analisar os regimes totalitários, advertia que a repetição massiva de mensagens governamentais pode remodelar o pensamento coletivo, eliminando o discernimento crítico e naturalizando o absurdo.

No campo democrático contemporâneo, autores como Noam Chomsky apontam como governos, mesmo em sistemas representativos, usam a mídia — muitas vezes aliada ao poder econômico — para "fabricar consentimento", conduzindo a opinião pública com técnicas sofisticadas de persuasão. A publicidade oficial, nesse contexto, deixa de ser serviço público e passa a ser catequese política disfarçada, onde o cidadão não é mais um interlocutor informado, mas um devoto condicionado.

O debate segue, porque a propaganda estatal não pode ser apenas espetáculo — não é show, nem palanque, muito menos novela de horário nobre. Deve ser, antes de tudo, responsabilidade e transparência. Quando o governante se torna o protagonista da própria encenação e transforma a comunicação pública em vitrine de autopromoção, quem perde é o cidadão, reduzido a plateia passiva de uma narrativa cuidadosamente roteirizada. Só quando a publicidade institucional abandonar os truques de ilusionismo e assumir seu papel republicano — de informar com clareza, ouvir com humildade e prestar contas com verdade — é que teremos, enfim, uma comunicação que respeita o povo, valoriza o contraditório e fortalece a democracia. Não com fogos de artifício, mas com luz.

 




A Verdade não se anuncia em intervalos

 

Por Jânsen Leiros Jr.

Como a propaganda oficial tenta esconder a realidade brasileira por trás de jingles e sorrisos ensaiados.

 

George Orwell — Escritor e ensaísta britânico“A propaganda é à democracia o que a violência é à ditadura.”

 Hannah Arendt — Filósofa política alemã“O maior inimigo da verdade não é a mentira deliberada, mas a banalização da realidade.”

 Aldous Huxley — Escritor e filósofo britânico, autor de "Admirável Mundo Novo" “A tirania perfeita será aquela que parecer uma democracia, mas que na verdade será uma prisão sem muros, onde os prisioneiros não sonharão com a fuga porque amarão sua servidão.”

 

Há uma névoa que paira sobre o país — e não é a do clima. É a névoa produzida por jingles, slogans e campanhas de governo que tomam conta da mídia como um bálsamo ensaiado, tentando convencer o povo de que tudo vai bem, mesmo quando o chão falta debaixo dos pés.

Nos últimos anos, o governo federal reativou sua máquina de propaganda com uma voracidade que beira o desespero. Não se trata de comunicar ações ou prestar contas à população. Trata-se de salvar imagem, de revestir um desgaste crescente com a maquiagem cara das campanhas institucionais. Não é publicidade, é pregação política travestida de prestação de serviço.

Enquanto o brasileiro comum luta para entender o preço da gasolina, o corte no orçamento das universidades, a fila do SUS ou a insegurança nas ruas, o governo entope os meios de comunicação com mensagens otimistas, produzidas para estancar o derretimento nas pesquisas. O alvo não é a verdade — é a percepção. E como já dizia o velho Goebbels, "uma mentira repetida mil vezes vira verdade".

Para contextualizar, em 2015, sob o governo Dilma Rousseff, os gastos com publicidade federal caíram para R$ 1,864 bilhão, representando uma redução de 24,1% em relação ao ano anterior. No primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, os gastos foram de R$ 935 milhões. Em contraste, a previsão para 2025, sob o atual governo, é de até R$ 3,5 bilhões em contratos de publicidade, abrangendo ministérios, bancos e estatais.

Esse fenômeno não começou ontem. Mas o que se vê agora é um salto qualitativo e eticamente perturbador: os gastos com publicidade federal se concentram em agências de publicidade com histórico de proximidade com o governo, algumas delas reincidentes em contratos milionários, muitas vezes sem o devido processo de concorrência transparente. Além disso, os veículos de comunicação escolhidos para veicular as campanhas são criteriosamente alinhados à simpatia editorial para com o governo — ou, ao menos, à ausência de crítica contundente. Ora, não há brasileiros assistindo a outras emissoras? A intenção, em princípio, não é comunicar e conscientizar os cidadãos? Então os critérios deveriam ser técnicos e não políticos.

Basta observar que jornais e redes independentes, de linha mais crítica, foram paulatinamente excluídos da lista de beneficiários das verbas publicitárias federais, enquanto grupos tradicionais e portais favoráveis ao discurso oficial viram suas cotas aumentarem expressivamente. A publicidade estatal, que deveria seguir parâmetros impessoais e republicanos, transformou-se em moeda de troca por apoio, silêncio ou alinhamento ideológico. Não se premia o alcance, mas a conveniência. É a velha prática do “quem cala, recebe” — reeditada com sofisticação institucional. A máquina pública se move como uma engrenagem de campanha antecipada, sem dizer que é campanha, sem admitir que já se mira 2026.

E é aí que mora o escândalo. Porque quando a verba da publicidade pública vira instrumento de manipulação de consciência coletiva, o Estado se torna um vendedor de ilusões. E o povo, um consumidor forçado de propaganda paga com seu próprio imposto.

Enquanto o país é inundado por campanhas que exaltam avanços e “conquistas”, os números da realidade seguem em direção oposta — fria, dura, inegável. O endividamento das famílias brasileiras permanece elevado, com 77% das famílias endividadas em 2024, sendo que 29,4% relataram dívidas em atraso e 12,9% afirmaram não ter condições de quitá-las. Entre as famílias de menor renda (0 a 3 salários mínimos), o endividamento aumentou para 81,1%, com 37,5% relatando dívidas em atraso.

A população em situação de rua aumentou aproximadamente 25% no último ano, passando de mais de 261 mil em dezembro de 2023 para quase 328 mil no fim de 2024. Esse número é 14 vezes superior ao registrado onze anos atrás, quando havia 22.922 pessoas vivendo nas ruas no país. A Região Sudeste concentra 63% dessas pessoas, com destaque para o estado de São Paulo, que representa 43% do total.

O desemprego diminuiu, é verdade — mas foi substituído por ocupações informais, intermitentes ou de baixíssima remuneração. Cresce o número de brasileiros sobrevivendo como “autônomos compulsórios”: motoristas de aplicativo, entregadores, ambulantes, freelancers à deriva — muitos dos quais sequer contribuem para a previdência e tampouco têm acesso pleno a direitos trabalhistas básicos.

E, por fim, enquanto o governo anuncia feitos grandiosos na educação e na saúde, faltam remédios nos postos, segurança nas escolas e estrutura nos hospitais. A retórica das propagandas se choca com o cotidiano dos cidadãos comuns, que esperam por cirurgias, enfrentam salas de aula lotadas e percorrem longos trajetos em busca de atendimento.

A realidade não precisa de slogans. Ela fala sozinha. E quando ela grita, a propaganda se torna não apenas inócua — mas criminosa.

Há algo profundamente perigoso no uso reiterado da máquina publicitária estatal como instrumento de anestesia coletiva. Não se trata mais de mera comunicação institucional — aquela que informa, orienta, presta contas. O que temos é uma orquestra de narrativas cuidadosamente selecionadas, com trilhas otimistas, atores sorridentes e mensagens plastificadas, tentando colar um país imaginário sobre um país real e sofrido.

Enquanto o povo se aperta para pagar as contas, vive de bicos ou dorme sob marquises, o governo transmite uma ilusão de prosperidade. Como um mágico de auditório, esconde a realidade com movimentos teatrais e luzes artificiais. E nessa encenação cara e contínua, paga com o suor do contribuinte, transforma a dor coletiva em espetáculo palatável — e a gestão pública em marketing de vitrine. Não se trata de comunicação — mas de sedação.

O que está em jogo é mais do que um orçamento turbinado: é o próprio pacto democrático. Porque um governo que precisa gritar nos intervalos comerciais para parecer que governa, já não governa. Apenas encena. 

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Fontes e Referências

DADOS SOBRE GASTOS COM PUBLICIDADE GOVERNAMENTAL:

  1. Portal da Transparência (Governo Federal)
  2. Controladoria-Geral da União (CGU)
    • Relatórios anuais de execução orçamentária.
    • Utilizada para verificar comparativos de gastos por governo.
  3. Secom/PR – Secretaria de Comunicação da Presidência da República
    • Publicações e comunicados oficiais sobre planos de mídia e contratação de agências.
    • Usada como base para projeções e contratos atuais (governo 2025).
  4. Notícias da imprensa (sobre previsões de gastos publicitários)
    • Estadão, Folha, CNN Brasil, O Globo, Poder360, Agência Pública.
    • Exemplo:
      • CNN Brasil – “Governo federal prevê gastar até R$ 3,5 bilhões com publicidade em 2025”

DADOS SOCIOECONÔMICOS:

  1. Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) – CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo)
  2. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
    • PNAD Contínua (desemprego e informalidade).
    • Dados utilizados para compor o trecho sobre ocupações informais e trabalho precário.
  3. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
    • Estudos sobre população em situação de rua.
    • Dados usados para o trecho sobre o aumento da população sem moradia (2023–2024).
    • Relatório técnico IPEA 2024

 

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Entre a Direita e a Esquerda: Por que insisto em não escolher um lado


 Por Jânsen Leiros Jr.

Vivemos tempos em que parece obrigatório declarar um lado. Em que, se não nos rotulamos, somos rotulados. Direita ou esquerda? Conservador ou progressista? Liberal ou estatista? Pois bem: recuso essa exigência simplista. 

Millôr Fernandes – "Dividir o mundo entre esquerda e direita é tão inteligente quanto dividir a comida entre doce e salgada."

 Max Weber – " Em tempos líquidos, nenhuma estrutura permanece firme o suficiente para sustentar verdades absolutas. A coerência exige flexibilidade, não adesão cega.”

 Rubem Alves – “Ideologias são como óculos: se não enxergarmos além deles, acabamos vendo apenas o que eles permitem.” 

Minha recusa não é omissão — é responsabilidade. Porque, ao olhar para a realidade brasileira, percebo que nenhum dos lados representa plenamente o compromisso que defendo: o de cuidar da sociedade sem sacrificar a liberdade e o desenvolvimento. E não estou só: segundo dados do próprio Senado Federal, 57% dos brasileiros afirmam não se identificar com nenhum dos polos dessa polarização[1] que tenta se impor como único modelo de cidadania.

               Se, de um lado, a direita demonstra insensibilidade ao sofrimento dos que precisam de apoio e proteção — defendendo um liberalismo muitas vezes selvagem, que ignora desigualdades históricas e reais, e que enxerga políticas públicas como meros entraves ao "livre mercado" —, do outro, a esquerda brasileira bravateia preocupação social, mas atua com interesses de poder escusos, instrumentalizando causas legítimas para seus próprios projetos de dominação e perpetuação no poder.

A direita brasileira, ao invés de defender genuinamente a liberdade e a responsabilidade individual, frequentemente se rende a um pragmatismo oportunista, utilizando o aparato estatal em benefício próprio, sem qualquer projeto consistente de desenvolvimento humano, cultural ou social. Discursa em favor da meritocracia, mas ignora as desigualdades estruturais que impedem o pleno acesso às oportunidades. Clama por ordem, mas se cala diante de injustiças flagrantes que atingem os mais vulneráveis.

Não é preciso grande esforço para ver que, enquanto a verdadeira socialdemocracia buscava construir sociedades mais prósperas e justas, equilibrando o livre mercado com sólidas políticas públicas, o que temos hoje no Brasil é uma esquerda que preferiu o caminho do aparelhamento estatal, da dependência política travestida de "cuidado social" e da demonização do setor produtivo, e uma direita que prioriza interesses de grupos econômicos sem construir uma nação mais justa e humana.

                 A socialdemocracia de verdade — a que inspirou as nações mais desenvolvidas do mundo — sempre soube que sem uma economia forte não há políticas sociais sustentáveis. E que sem liberdade, nem o Estado nem o indivíduo têm futuro. Infelizmente, no Brasil, esquerda e direita parecem preferir repetir slogans ao invés de construir soluções.

É nesse contexto que resgato uma convicção expressa em outro texto meu, intitulado Cristão — um subversivo no mundo real[1]. Nele, afirmei que ser discípulo de Jesus é viver com a consciência livre de amarras ideológicas, livre para denunciar injustiças onde quer que estejam, e para discernir, com coragem e fidelidade, as incoerências e perversões de qualquer sistema — seja de direita ou de esquerda. Não se trata de neutralidade, mas de compromisso com a verdade que liberta (João 8:32), com a justiça que não faz acepção de pessoas (Tiago 2:1-9), e com o Reino que não se encaixa nas lógicas deste mundo (Romanos 12:2).

Portanto, meu posicionamento é claro:

ü  Defendo a justiça social como valor essencial.

ü  Defendo a liberdade de expressão e de empreendimento como garantias inegociáveis.

ü  Defendo a responsabilidade fiscal e a ética pública como fundamentos de qualquer projeto de sociedade.

Se isso não cabe na polarização que nos oferecem, é porque o problema está nela — não em mim.

                Portanto, e para deixar a questão definitivamente esclarecida, recusar a polarização não é sinal de omissão, mas de maturidade cristã e intelectual. É compreender que o Reino de Deus não se submete aos impérios terrenos nem se deixa instrumentalizar por narrativas humanas. É estar disposto a andar na contramão das expectativas ideológicas, ouvindo a consciência moldada pela Palavra e respondendo ao chamado profético de ser sal e luz num mundo corrompido por interesses de poder.

Ser livre para denunciar o erro, venha ele de onde vier, é um ato de fidelidade ao Cristo que não se aliou nem ao Sinédrio nem a Roma — mas que deu a vida por todos, inclusive por aqueles que O acusaram e O traíram. Esse é o lugar de quem crê: em pé, no meio da praça, com os olhos no Alto e os pés firmes no chão.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Utopias Sociais: Reflexões sobre o Conceito de Ócio Criativo e Outras Visões Ideais

Por Jânsen Leiros Jr. 

John Maynard Keynes – "Dentro de cem anos, nossa principal preocupação será como usar nosso tempo livre." (Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos) 

Max Weber – "A ética protestante e o espírito do capitalismo criaram uma mentalidade onde o trabalho não é apenas um meio de sobrevivência, mas um fim em si mesmo." (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo) 

Recentemente, deparei-me com uma discussão que resgatava um tema recorrente em tempos de avanço tecnológico acelerado: a promessa de um futuro sem trabalho, no qual a automação e a inteligência artificial libertariam o ser humano das obrigações laborais, permitindo-lhe uma vida dedicada ao ócio criativo e à realização pessoal. Essa visão, popularizada por autores como Domenico De Masi, desperta tanto entusiasmo quanto ceticismo. Para alguns, trata-se de um caminho natural do progresso, um ponto inevitável na evolução das sociedades. Para outros, é apenas mais uma utopia reservada a uma elite privilegiada.

A ideia de que o progresso humano permitiria às pessoas viverem mais livres, dedicadas à criatividade e ao aprendizado, não é nova. Desde Aristóteles, que afirmava que a contemplação era a mais alta forma de vida, passando por Karl Marx, que via o trabalho alienado como um mal a ser superado, até o sociólogo italiano Domenico De Masi, a promessa de um mundo onde o trabalho se misturaria ao lazer e à educação sempre esteve presente.

Mas essa visão resiste à realidade? O conceito de ócio criativo proposto por De Masi reflete uma possibilidade concreta ou apenas uma utopia reservada a uma elite? Para responder a essa questão, é necessário confrontar o ideal com a realidade, analisando não apenas o pensamento de De Masi, mas também os argumentos de seus críticos e os desafios estruturais que impedem sua concretização.

O Que é o Ócio Criativo?

Domenico De Masi, em obras como O Ócio Criativo (2000), defende que a sociedade pós-industrial permite que o trabalho deixe de ser mecânico e opressor, tornando-se mais intelectual, autônomo e prazeroso. Para ele, a tecnologia reduziria a necessidade de trabalho manual, permitindo que os indivíduos combinassem trabalho, lazer e aprendizado em uma simbiose produtiva e prazerosa.

Os pilares do ócio criativo:

  • Trabalho prazeroso – O trabalho não deve ser uma obrigação alienante, mas sim algo que estimule a criatividade.
  • Aprendizado constante – O conhecimento deve ser contínuo, e não algo restrito a uma fase da vida.
  • Lazer produtivo – O descanso não é mera ociosidade, mas um espaço fértil para ideias inovadoras.

Para De Masi, esse modelo se tornaria dominante à medida que a tecnologia substituísse o trabalho repetitivo e o mundo migrasse para uma sociedade do conhecimento, onde a criatividade seria o principal motor da economia.

As Críticas ao Ócio Criativo: Utopia para Poucos?

Apesar de seu apelo inspirador, o conceito de ócio criativo enfrenta críticas severas. Seus opositores argumentam que o modelo de De Masi é elitista e ignora a desigualdade estrutural do capitalismo. Entre os principais pontos críticos estão:

O Trabalho Alienado Ainda é a Regra

Karl Marx, em O Capital (1867), descreveu como o capitalismo impõe uma lógica de exploração do trabalho, transformando o operário em um ser alienado de sua própria produção. Esse cenário não mudou substancialmente: milhões de trabalhadores continuam em empregos repetitivos, mal remunerados e sem perspectiva de mobilidade social. Enquanto uma elite criativa pode usufruir de maior flexibilidade, a imensa maioria da população mundial continua presa ao modelo tradicional de trabalho opressivo.

A Automação Não Liberta – Ela Desemprega

De Masi afirma que a automação reduziria o trabalho braçal, permitindo às pessoas se dedicarem ao lazer e ao aprendizado. No entanto, autores como David Graeber, em Bullshit Jobs (2018), argumentam que a automação tem criado dois efeitos colaterais:

  1. A destruição de empregos tradicionais, deixando milhões de pessoas desamparadas.
  2. A criação de "trabalhos de fachada", onde muitos empregados executam funções burocráticas inúteis apenas para manterem a ilusão de produtividade.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu também criticou essa lógica, afirmando que o acesso à educação e à tecnologia não ocorre de forma igualitária, perpetuando a exclusão social.

O Ócio Criativo Depende do Trabalho Opressivo de Outros

O filósofo Byung-Chul Han, em Sociedade do Cansaço (2010), aponta que, longe de vivermos uma era de liberdade, estamos mais exaustos do que nunca, pressionados pela hiperconectividade e pela exigência de sermos produtivos até no lazer. Além disso, o suposto “ócio criativo” só é possível porque há uma base de trabalhadores realizando serviços essenciais, como entregadores, operários, faxineiros e balconistas.

O Avanço Tecnológico: Libertação ou Nova Forma de Exploração?

Desde a Revolução Industrial, ouvimos que as máquinas permitiriam aos humanos trabalhar menos e viver melhor. No entanto, a história mostra que os avanços tecnológicos frequentemente resultam em:

  • Desemprego estrutural – Trabalhadores substituídos por máquinas sem um plano de requalificação.
  • Concentração de riqueza – Empresas de tecnologia acumulam lucros enquanto milhares perdem seus empregos.
  • Trabalho precarizado – A “economia do bico” (uberização) força trabalhadores a se tornarem autônomos sem direitos trabalhistas.

Como apontado pelo economista Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI (2013), a tecnologia tende a aprofundar as desigualdades sociais, beneficiando aqueles que já possuem acesso ao capital e à educação.

Mudanças Estruturais Necessárias

Para que ideias como a de De Masi sejam aplicadas de forma ampla e justa, serão necessárias mudanças profundas na estrutura econômica e social. Algumas delas incluem:

  • Redução da jornada de trabalho.
  • Implantação de uma renda básica universal.
  • Requalificação profissional gratuita.
  • Reformas tributárias progressivas.

Nos próximos textos, discutiremos cada uma dessas mudanças em profundidade, analisando sua viabilidade e impactos para uma sociedade mais equitativa. Afinal, o ócio criativo pode ser mais do que uma utopia distante, mas para isso, precisaremos reformular profundamente as bases estruturais que sustentam o mundo do trabalho tal como o conhecemos.

 

 


quinta-feira, 13 de março de 2025

JL Insight - Opinião que faz pensar

 

Por Jânsen Leiros Jr.

"O jornalismo é, antes de tudo, a arte de perguntar." — Ryszard Kapuściński (jornalista e escritor polonês)

"A liberdade de expressão é dizer aquilo que as pessoas não querem ouvir." — George Orwell (escritor e ensaísta britânico)

"Jornalismo não é definir os bons e os maus, mas expor os fatos para que as pessoas possam pensar por si mesmas." — Tim Sebastian (jornalista britânico, fundador do programa HARDtalk da BBC)

Uma apresentação

O JL Insight nasce com a proposta de trazer uma leitura crítica do cenário nacional e internacional, dando um passo além do que sempre fizemos. Evoluímos o Link Our View para algo mais abrangente e direto: um espaço que busca entregar a você a informação de maneira reflexiva, analítica e sem filtros ideológicos. Mas, ao contrário do que é comum no mercado, optamos por não anunciar o lançamento antes da hora. Decidimos que só apresentaríamos nosso novo espaço com ele já "andando", para que a informação, em vez de gerar expectativa, apenas explique o que eventualmente já tenha sido percebido de diferente. Um treino para nosso novo modelo de interação com você.

Foi assim que nossos primeiros artigos chegaram ao público. "A Ascensão da Direita na Europa" e "Solitude e Conexão" já foram publicados e estão sendo lidos e discutidos aqui. Eles não foram lançados com alarde, mas sim como parte de uma transição natural para uma nova forma de enxergar os fatos. Queremos que o JL Insight seja um espaço onde a informação é analisada, questionada e desvendada, sem filtros, sem concessões e sem obediência a qualquer viés.

Para organizar melhor nossos conteúdos e aprofundar a análise dos temas mais relevantes do momento, criamos diferentes colunas, cada uma com um enfoque específico e um olhar próprio sobre os fatos. E já tem texto lá! Basta clicar nas abas acima.

A Olho Nu – Enxergando a Realidade Sem Filtros

Nos acostumamos a ver o mundo através das lentes de narrativas construídas por interesses diversos. Mas e se pudéssemos tirar essas lentes e enxergar tudo com clareza absoluta? Essa é a proposta de A Olho Nu, uma coluna que convida o leitor a observar os fatos sem distorções, sem maquiagem e sem manipulação.

Aqui, desvendamos os acontecimentos tal como são, sem concessões e sem receio de contrariar discursos pré-estabelecidos. O objetivo é estimular a reflexão e desafiar visões prontas, para que cada leitor possa construir sua própria compreensão da realidade.

A Olho Nu, é um olhar limpo de lentes e lados.

Sub-versão – A Verdade por Baixo das Versões

Toda história tem versões, mas qual delas se sustenta diante de uma análise mais profunda? Sub-versão é a coluna que questiona narrativas oficiais, investiga os meandros do poder e expõe as pretensões que moldam os fatos. O nome carrega, intencionalmente, um duplo sentido: subverter a informação moldada por interesses e buscar a versão verdadeira e oculta.

A proposta é desafiar o senso comum meramente assimilado, e desconstruir discursos prontos, incentivando uma leitura mais crítica e provocativa da realidade. Sub-versão não apenas informa, mas instiga o leitor a pensar além das aparências.

Sub-versão é o olhar de quem enxerga as pretensões.

O Que Vem Por Aí?

Essas são apenas as primeiras colunas do JL Insight. Com o tempo, novos espaços serão adicionados, cada um trazendo uma abordagem única sobre política, economia, cultura e comportamento. Nosso compromisso é com a verdade e com a liberdade de pensamento. E para isso, não há tema proibido, não há pauta intocável.

O JL Insight não se propõe a dar respostas definitivas, mas sim a fazer as perguntas certas. O leitor é convidado a sair da zona de conforto, questionar certezas e explorar perspectivas que muitas vezes são ignoradas.

Seja bem-vindo ao JL Insight, onde a informação é analisada, questionada e desvendada, para produzir a opinião que faz pensar.

terça-feira, 11 de março de 2025

Solitude e Conexão: O Perigo das Relações Programadas e o Futuro da Humanidade

 

Por Jânsen Leiros Jr.

Yuval Noah Harari, historiador e autor de "Homo Deus" e "21 Lições para o Século 21" – Entrevista à The Economist

"As IAs não precisam ter consciência para substituir relações humanas. Se forem capazes de entender nossas emoções, prever nossas reações e oferecer companhia personalizada, muitas pessoas podem preferi-las a interações humanas reais. Isso pode enfraquecer laços sociais e transformar profundamente nossas estruturas psicológicas e culturais."

Sherry Turkle, psicóloga e autora de "Alone Together" – Palestra no MIT Media Lab

"A tecnologia nos dá a ilusão de companhia sem a necessidade de compromisso e esforço. Quando optamos por interações programadas, estamos nos afastando do outro e da complexidade das relações reais, tornando-nos mais frágeis emocionalmente."

 Byung-Chul Han, filósofo e autor de "A Sociedade do Cansaço" e "No Enxame" – Artigo na Der Spiegel

"Vivemos na era da positividade e da eliminação do conflito. A IA afetiva se encaixa perfeitamente nesse contexto: ela responde exatamente como queremos, sem desafios, sem resistência. Isso pode levar ao empobrecimento da experiência humana e à perda da autenticidade nos vínculos." 

A ascensão das inteligências artificiais programadas para interações afetivas tem gerado um fenômeno intrigante e inquietante: pessoas estão estabelecendo relacionamentos amorosos com IA. Essa nova realidade, antes restrita ao campo da ficção científica, se tornou um fato consumado impulsionado pelo avanço da tecnologia e pela crescente solidão moderna. Mas quais são as implicações disso? Quais os riscos sociais, psicológicos e filosóficos envolvidos nessa substituição das relações humanas por vínculos artificiais?

O ser humano é, por natureza, um ser relacional. Como afirmou Aristóteles, "o homem é um animal político", ou seja, sua existência se dá na interação com o outro. A conexão interpessoal envolve reciprocidade, espontaneidade, imprevisibilidade e aprendizado contínuo. Relacionamentos reais exigem esforço, adaptação, paciência e, acima de tudo, a disposição de lidar com a alteridade. A substituição dessas interações por IA, no entanto, elimina esses desafios e reduz as relações a um monólogo sofisticado, onde o indivíduo interage apenas com sua própria idealização refletida em uma máquina.

Esse fenômeno pode ser compreendido dentro do que alguns autores contemporâneos já vêm discutindo. Yuval Noah Harari, por exemplo, alerta para os riscos de delegarmos nossa subjetividade a sistemas algorítmicos que, ao nos compreenderem melhor do que nós mesmos, podem manipular e controlar nossas escolhas mais íntimas. Domênico De Massi, ao abordar a sociedade contemporânea, destaca como a busca pela facilidade e pela ausência de frustrações tem levado à infantilização do indivíduo, que passa a rejeitar qualquer forma de desafio ou desconforto. Esse fenômeno se encaixa naquilo que podemos chamar de "ditadura da mediocridade", onde a complexidade das relações humanas é descartada em favor da previsibilidade e do conforto de interações artificialmente moldadas.

Nietzsche também anteviu algo semelhante ao descrever o "último homem", um ser humano que busca apenas conforto e evita qualquer tipo de esforço ou risco. Platão, por sua vez, ao analisar a degeneração dos regimes políticos, já indicava que o desejo descontrolado pela satisfação pessoal poderia levar ao colapso das estruturas sociais. Ao analisarmos a sociedade atual sob essa ótica, percebemos que o avanço da tecnologia e a substituição do humano pelo artificial não são apenas uma consequência natural do progresso, mas um reflexo de uma crise existencial que já vinha sendo desenhada há séculos.

A perda do esforço relacional não apenas empobrece a experiência humana, mas também enfraquece a resiliência psicológica. Como apontam os psicólogos sociais, o desenvolvimento emocional saudável depende da capacidade de lidar com frustrações, negociações e ajustes interpessoais. A introdução de relacionamentos artificiais pode criar gerações cada vez menos tolerantes à frustração, menos adaptáveis e, paradoxalmente, mais solitárias, já que o contato humano se tornaria progressivamente mais difícil e desconfortável para aqueles que se acostumam à docilidade das respostas de uma IA.

Do ponto de vista econômico e social, a tendência à consolidação dessas interações artificiais é quase irreversível. O lucro que se pode extrair da comercialização de assistentes virtuais afetivos é imenso. Empresas como a Replika e a Character.AI já movimentam milhões de dólares ao oferecerem interações personalizadas, enquanto gigantes da tecnologia investem pesado no desenvolvimento de inteligências artificiais que simulem emoções humanas com ainda mais precisão. Essa tendência segue um caminho semelhante ao que já ocorre no mercado de entretenimento, onde plataformas de streaming moldam as preferências do público por meio de algoritmos, garantindo maior previsibilidade de consumo. Qualquer tentativa de resgate das relações humanas será marginalizada ou ridicularizada, pois irá de encontro aos interesses dessas corporações.

Os clássicos da filosofia já alertavam para os perigos da dissolução dos princípios fundamentais da sociedade. Platão falava da degeneração dos regimes políticos, onde o desejo desenfreado pela satisfação pessoal destruiria a ordem social. Nietzsche advertia sobre o niilismo crescente, que poderia levar a humanidade a um estado de apatia e desconexão total. Aldous Huxley, em "Admirável Mundo Novo", já previa uma sociedade onde o prazer imediato e as distrações tecnológicas substituiriam as relações humanas autênticas. O que vemos hoje é a concretização dessas previsões em um nível ainda mais sofisticado e sutil.

O que fazer diante desse cenário? O primeiro passo é compreender a profundidade da crise e resistir à tentação da facilidade. Relações humanas autênticas exigem esforço, mas são a única forma de crescimento real e de conexão verdadeira. Se abrirmos mão disso, não estaremos apenas substituindo a complexidade pelo conforto – estaremos abrindo uma fissura sem precedentes no tecido social humano, cujas consequências podem ser irreversíveis.

Se a lógica do lucro e da conveniência continuar moldando os relacionamentos humanos, podemos estar diante de um ponto de não retorno, no qual as conexões artificiais não serão apenas aceitas, mas celebradas como o novo padrão de interação. A facilidade será priorizada em detrimento da profundidade, e os vínculos humanos reais poderão ser relegados ao status de arcaísmos emocionais, vistos como desnecessários ou mesmo disfuncionais.

No extremo dessa distopia, a sociedade poderá se reorganizar em torno de relações programadas, onde cada indivíduo terá acesso a companhias virtuais que se ajustam perfeitamente às suas preferências, eliminando o desconforto das interações imprevisíveis. O paradoxo disso é evidente: quanto mais as pessoas se habituam ao conforto das interações sem atrito, menos tolerância terão para as complexidades das relações reais. A artificialidade, nesse contexto, não será um complemento, mas um substituto.

O que isso diz sobre a natureza humana? Talvez estejamos diante de uma fragilidade estrutural da psique moderna, que, incapaz de lidar com frustrações e desafios, busca refúgio em relações sem riscos. Ou talvez seja apenas a continuação lógica de um processo que começou há muito tempo, com a digitalização das experiências humanas e a crescente dependência da tecnologia para mediar todas as formas de interação.

Se há uma resistência possível, ela virá dos que ainda enxergam valor naquilo que é genuíno, imperfeito e humano. Relações autênticas exigem esforço, paciência e entrega — coisas que não podem ser replicadas por códigos e algoritmos, por mais sofisticados que sejam. A construção de ambientes e comunidades que incentivem interações presenciais, a valorização de espaços de diálogo real e o fortalecimento de relações interpessoais genuínas podem ser algumas das formas de combater essa tendência. O desafio para as próximas gerações não será apenas conviver com a IA, mas garantir que o humano, com todas as suas contradições e profundidade, não se torne obsoleto.

Talvez estejamos à beira de uma fissura irreversível no tecido social, ou talvez ainda haja tempo para redefinir os rumos dessa transformação. Mas se o mundo continuar nessa direção, haverá um momento em que os que ainda valorizam a complexidade dos relacionamentos humanos serão vistos como anacrônicos, quase como dissidentes de uma nova ordem social. E, quando esse ponto for atingido, o que restará daquilo que chamamos de humanidade?